quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A teimosia estrutural de Passos Coelho

Ao contrário do que muitos julgam, a manutenção "obstinada" do ministro Crato por parte de Passos Coelho, depois de tudo o que se passou, nada tem de teimosia pessoal. Ou, pelo menos, não é principalmente um caso de teimosia pessoal.
Nem se deve dizer "apesar de tudo o que se passou", mas antes quase se deve dizer "precisamente por se ter passado o que se passou". Não há aqui uma teimosia particular, individual, o resultado fortuito ou casual do carácter do indivíduo Pedro Passos Coelho que calharia ser "obstinado", "estulto", "burro", etc. Temos aqui qualquer coisa como uma teimosia não episódica, não pontual, não "conjuntural", mas sim "estrutural". Esta obstinação do primeiro-ministro está inscrita na própria natureza do governo e da sua governação.
Isto é, se este fosse um governo "normal", um governo que procurasse gerir o melhor possível a coisa pública, mesmo com uma ou outra "reforma", o seu primeiro-ministro preocupar-se-ia com a "incompetência", com o "ruído" e até com os danos infligidos a tantos milhares de alunos, professores e famílias. Mas não. É que este é um governo revolucionário chefiado por um primeiro-ministro com um projecto revolucionário para o país (uma "refundação do Estado", lembram-se?...), um projecto salvífico que vem corrigir erros "estruturais" acumulados ao longo de décadas de "socialismo".
Está uma revolução em curso. Crato é um elemento-chave nessa revolução. Passos não vai desperdiçá-lo nem vai puni-lo por aquilo que é inevitável: os desagradáveis efeitos colaterais do processo revolucionário.
 
Para estes agentes políticos, na verdade, tudo se passa como se fosse a "realidade" a estar errada. É ela que - por uma distorção essencial de décadas - não se adapta às mudanças que lhe aplicam - autênticos tratos de polé. São essas distorções da "realidade" que se trata agora de corrigir. Isto é, há que reconduzir a "realidade" ao estado que lhe é natural. O sofrimento e o prejuízo de professores e alunos são apenas as dores de parto dessa nova era que está nascendo.
Por isso, não vale a pena tentar "compreender" a obstinação do primeiro-ministro - que, de um ponto de vista "normal", é incompreensível, irracional. Acontece que este não é o ponto de vista de Passos Coelho e dos que o acolitam e todos os dias o encorajam.
É preciso ser "corajoso", "determinado" e ignorar os lamentos desta nova variante dos "piegas" e seguir em frente - porque a História nos dará razão, absolver-nos-á, etc.
 
 
 
 
Nem de propósito, o Público exibia ontem esta foto do ministro da Educação, num "centro escolar" em Forjães, Esposende [ver]. A imagem é felicíssima - no seu acaso cruel é reveladora. A alegoria involuntária foi aqui mais verdadeira que a imagem quotidiana. Lá está Crato, de punho direito erguido, o sinal da força, da ameaça e, sobretudo, da certeza da Revolução (dir-se-ia regressado aos vinte anos, quando era um militante partidário e entusiasta de Enver Hoxha.); não falta o olhar esgazeado em alvo febril - um olhar que avista a Verdade para lá dos escombros. O primeiro-ministro lá está também, dominando, discreto, sabendo-se sem necessidade do espavento.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Limites passados

"Eu disse 'mantêm-se'; não disse 'manter-se-ão'."
 
 
Perante esta infâmia descarada, que nos é cuspida em pleno rosto, devemos guardar silêncio verbal e deixar falar os nossos corpos - cerremos os punhos.
 
 
Quando Crato viola o sentido da linguagem abusando de todos nós, quando Passos Coelho premeia o ultraje leviano e a incompetência criminosa rindo para todos nós e rindo, assim, de todos nós, quando o Secretário Casanova Almeida diz, falando não com a boca, mas com um encolher de ombros, que os professores que ele mesmo prejudicou podem sempre recorrer a tribunais, quando o fazem, cospem nos nossos rostos e revelam-se como o que são: escarros.
 
 
"Eu disse 'mantêm-se'; não disse 'manter-se-ão'."
Quando se cria ter-se já atingido os limites, eis que um novo limite parece ser desenhado com a transgressão do anteriormente marcado. E assim vamos sendo depostos, reiteradamente, perante novos limites da infâmia política. A imaginação destes homens que nos governam a polis consegue sempre saltar para lá da última infâmia - o nosso pasmo ainda mal tinha arrefecido, quando nos desvelam ainda novíssimas paragens da afronta, da degradação. São, de cada vez, paragens inóspitas para nós, onde não temos pé, nem casa. Ficamos, por isso, aturdidos e agarramo-nos então a essa última revelação querendo acreditar que esta, agora, é a última, foi a última - já não pode haver pior do que isto.
Mas não. Mostram-nos que há sempre mais para lá - estão continuadamente a actualizar as sucessivas possibilidades por nós inimaginadas.
Causa sempre vertigens a interrogação de onde irão eles buscar o estofo para mais esta infâmia. E esta, agora, está, afinal, sempre prenhe de uma outra infâmia futura.
 
E o que fazer perante isto?... Esta pergunta pressupõe já haver algo a fazer em resposta àquilo. É inevitável. A ausência de resposta não é possível - estes sucessivos ultrajes preenchem todo o nosso horizonte e, por isso, mesmo a nossa mudez é sempre uma resposta a eles.
Assim, perante esta última infâmia desavergonhada (que encerra em si, não esqueçamos, todas as anteriores) há duas respostas possíveis. Uma, aquela que é, aparentemente, a mais "moral", a mais "digna", é a de prosseguir com o nosso trabalho, cumprir o nosso dever - como que moucos, com indiferença soberana a todas as injúrias, a toda a enxúndia que venha daqueles.
Esta resposta tem o risco da aparência da resignação. Ou até da atribuição, por parte deles, da nossa assunção, da nossa anuência, da nossa concordância tácita com as suas decisões, opções. Decerto que será este último caso a acontecer. A história passada das personagens em consideração mostra à saciedade ser esse o seu modus operandi perverso.
Temos, então, de ter a coragem de admitir, de pôr a possibilidade da segunda resposta. Esta será uma resposta que encontra a legitimidade da sua possibilidade num lugar que está aquém de todas as considerações decorrentes da escolha de uma ideia de organização social, que, enquanto tal, estabelece limites para certas acções e tem estipulados quais e em que condições é permitido a agentes humanos praticar essas acções. Aqui, repita-se, está-se aquém disso. Trata-se de uma resposta do nosso corpo, de uma resposta que vem como que do nosso estômago, das nossas tripas.  Só essa pode ser a resposta positiva, porque ela responde a afrontas e danos que atingem o nosso corpo, que o atingem na sua carne, porque, na verdade, vêm até nós sem qualquer mediação política, não partem, realmente, já de uma posição política ou "institucional" (ainda que, artificialmente, revestidos de "instituição"), não atingindo, assim cidadãos ideais (ou abstractos?), mas homens e mulheres concretos com corpos concretos e individuais enquanto tais. Quando Crato, ou Passos Coelho, nos diz o que nos diz, ufanando-se da sua impunidade, arremessando-nos a afronta infame e infamante, não estamos já diante de um ministro que governa "normalmente"; estamos diante, simplesmente, nuamente, de um homem que nos insulta - ainda que seja um homem com poder, mas, no seu exercício, um poder factual, em bruto, não-legitimado institucionalmente. E, mais uma vez, a resposta a isto só pode ser a da indiferença (arriscada, como se viu) ou a positiva dada pelo nosso corpo concretamente. Uma resposta limpa dada pelos nossos punhos ou pelas palmas das nossas mãos - os limites actuantes do nosso corpo por excelência.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O riso do primeiro-ministro

Esta tarde, Passos Coelho, ao lado do ministro da Educação, disse-nos, rindo, que este não será demitido. Rindo.(*)
Que o primeiro-ministro nos diga não ir demitir o ministro da Educação é politicamente significativo. Que ele o diga rindo é moralmente significativo.
O primeiro-ministro atira aquele riso aos professores, aos alunos e aos pais. Não apenas àqueles professores agora com a vida em pantanas, não apenas aos alunos que ainda não têm professor ou que o perderam abruptamente, nem apenas aos seus pais. O riso do primeiro-ministro foi atirado com todos os dentes a todos os professores, a todos os alunos e a todos os pais, porque todos eles são reflexos dos outros e são sempre objectos possíveis do que aconteceu aos outros. Uma possibilidade de um passado e uma possibilidade para um futuro: aquele poderia ter sido eu e eu poderei vir a sê-lo amanhã.
A amoralidade que o primeiro-ministro nos atira tem, por isso mesmo, um significado moral que o define.
 
 
(*) Imagens aqui e também ali.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A condição de professor descolocado

Talvez ainda mais do que o processo da marcação da famosa prova salvífica do Ensino português (um Despacho assinado à socapa e publicado no Diário da República três dias antes da data da prova, quando os professores se encontravam de férias, apanhando-os de emboscada - verdadeiras vítimas, assim, de um governo de salteadores), o que esta história da anulação de colocações já efectuadas [ver aqui e aqui] mostra é uma indiferença desumanizante por parte da tutela. Não esqueçamos que esta é constituída por pessoas que, por mais incompetentes que sejam, sabem o que fazem. (*)
Quando o Ministro Crato e os seus Secretários de Estado decidem isto ou aquilo, sabem bem, conseguem prever - pelo menos parcialmente - as consequências das suas opções. O que se passa é que, prevendo-as, aceitam-nas.
As consequências não são um mero exercício teórico - qualquer coisa como uns war games com mortos e feridos a brincar. Os objectos das decisões deste Ministério são, antes de professores, gente com vidas - e as vidas são maleáveis, frágeis, à mercê de contingências exteriores. Por isso, é preciso cuidado quando se detém o poder de as afectar. (Para não falar dos alunos e das "famílias", essas entidades semanticamente misteriosas de que o Ministro Crato mostra ter a boca cheia de cada vez que a abre.)
No entanto, neste caso (um caso miserável perpetrado, assim, por gente que se conduz miseravelmente, não tenhamos medo das palavras), neste caso, não se trata somente de uma mera falta de cuidado perante a natureza frágil de vidas de gente. Trata-se, na verdade, da atribuição de uma outra natureza a essas vidas. Elas são tratadas como entidades plásticas desprovidas de consistência. As vidas daqueles professores, isto é, aqueles professores eles mesmos, não são já realidades irredutíveis, com uma consistência que lhes é própria e que os define enquanto tais (o ser-professor, o ser-humano, com tudo o que isso traz consigo, etc.); não são sequer correlatos, mas somente são constituídos como meros relativos ou talvez meros termini das decisões de agentes políticos. Estes sim, são erigidos como autênticos sujeitos: do outro lado não há ninguém - apenas material desprovido de personalidade que se encontra à mercê de qualquer decisão. Tratando-se apenas de materiais, os limites da actuação sobre os professores são também apenas materiais. Isto é, não há lugar a limitações formais. Assim, tudo parece ser permitido.
 
Não faz sentido protestar-se e invocar-se "direitos" aos que tomaram as decisões, porque esses "direitos" não foram, por assim dizer, desleixados ou ignorados. Acontece que os "direitos", quando ignorados, estão, por assim dizer, postos de lado, mas pressupõe-se sempre a sua existência anterior e a sua recuperação possível - encontram-se como que entre parênteses. Neste caso não é isso que acontece. Aqui, os "direitos" dos professores não chegam sequer a ser ignorados, porque estão como que anulados à partida. Isto é, não tivemos aqui alguém considerado sujeito de direitos a quem estes fossem, depois, retirados. Os professores-objectos-destas-decisões são, logo de raiz, constituídos como desprovidos de "direitos". Aqueles professores não estão sob nenhuma espécie de estado de excepção - uma excepção que se estabeleceria sobre o pano de fundo da possibilidade (por mais remota que fosse) da restauração de uma condição de dignidade que lhes teria sido subtraída temporariamente. 
Por outras palavras, é considerado natural que sejam tratados, que sejam dispostos como foram. Isto é, todos os processos humilhantes, degradantes e nocivos que têm sofrido às mãos do Ministério deste Governo correspondem, adequam-se à sua natureza. Num certo sentido, para Crato, Secretários, Primeiro-Ministro e apaniguados, os professores "têm o que merecem". Quer dizer, têm, sofrem o que é adequado à sua condição de material disponível e manipulável. (Quando muito, serão "humanos" apenas enquanto puníveis.) Limitam-se a estar ali, inertes e inermes - estão ali, mas não fazem, digamos, o seu lugar, como o faz um ser humano. É claro que têm reacções patéticas exibidas pelas televisões, quando se descobrem enganados, traídos, ludibriados, em aflição, mas essas mesmas reacções "humanas" não despertam qualquer "compaixão" ou "compadecimento" - pelo contrário, confirmam e reforçam, como que sendo reacções meramente mecânicas, "animais", o seu estatuto "desprezível", descartável. (E, aos olhos do público, essas cenas não melhoram de todo a sua dignidade profissional.) Isso é assim, porque essas reacções aparecem inscritas, compreendidas num quadro geral de inumanidade. (Não tenham dúvidas que é assim que os vê a chusma de apoiantes do Governo que, cada vez mais ruidosa, vai infestando blogs e mass media. A esses importam apenas os ganhos ou as perdas posicionais da sua dama - tudo o mais, a moral, a decência ou até a incolor competência técnica, é passado para segundo plano.) Aqueles professores, mais exactamente, as mais das vezes, professoras - o que não é de somenos no nosso ecossistema machista -, no seu desespero mostrado, são vistos, na melhor das hipóteses, como importunos, como maçadores.
Assim, como estão ali, mas num não-lugar, não têm nunca um lugar seu. Têm, antes e apenas, todas as posições possíveis. Têm posição (porque são disponíveis), mas não lugar.
Essa condição dos professores só cessa quando cessar igualmente o olhar que a constitui.


(*) No caso daquele processo da prova, estamos perante, não um exemplo de indiferença desumanizante, mas sim propriamente de um acto malévolo.

A verdade

Para o governo presente, para o anterior, para o próximo, os professores são uma classe a abater - laboralmente, profissionalmente, simbolicamente.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Efectuar efeitos

O princípio que orienta as opções e decorrentes actos políticos do Ministério da Educação (as mais das vezes, actos de confronto, de afronta, de ultraje para a degradação da imagem buscando uma devastação simbólica) parece ser o da eficácia. Mais o da eficácia do que o da eficiência (esta requer um fôlego maior, mais distendido). Trata-se de eficácia a todo o custo. Os meios, as condições, as consequências secundárias dessa eficácia parecem não ser tidas em conta. Na verdade, são despiciendos, estabelece-se uma perspectiva como que amoral que resulta em efeitos imorais, desprovidos de decência, porque o que conta é a eficácia da medida. Procura-se, acima de tudo, efectuar, obter resultados. Mas são resultados, efeitos, de curto prazo, duplamente de curto prazo: o tempo entre a decisão e o efeito é curto e o próprio efeito é também de curta duração. (Não se trata, assim, de efeitos duráveis ou com alcance projectado no futuro - precisamente aqueles que deveriam caracterizar e decorrer de uma política educativa digna desse nome.)
A imediatez do efeito da eficácia (acontece logo a seguir, rapidamente) gera no público a ilusão da eficiência competente, quando, afinal, se está perante uma mera eficácia instrumental e fugaz: um fogacho muito visível e ruidoso, mas pouco consistente. Por um lado, a rapidez do "acontecimento" não permite uma mediação, uma distância que possibilitaria uma apreciação mais cuidada e atenta, isto é, um olhar que discriminasse mais determinações (precisamente o que o Ministério pretende evitar); por outro lado, essa qualidade rápida da coisa provoca uma espécie de tontura na percepção pública ou um pasmo que preenche todo o horizonte e que entorpece qualquer veleidade analítica.
Os efeitos da eficácia são propagandísticos, retóricos - o que não é de todo acidental: busca-se exactamente uma adesão do público, mesmo que os enunciados não tenham qualquer correspondência na realidade.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Relação ilegítima

Continuando uma das pontas deixadas aqui:
Por mais que nos esforcemos, não conseguimos encontrar nenhuma relação "natural" (mormente, causal) entre, de um lado, as reacções de defesa ou, no mínimo, de desconforto, que um grupo social (pensionistas, ou funcionários públicos, ou inquilinos, ou senhorios, ou lojistas, etc.) ou uma classe profissional manifeste relativamente às opções políticas de um governo e, de outro lado, a qualidade das suas teses. A expressão de descontentamento é uma coisa; a justiça ou, mais frequentemente, a putativa injustiça dessa posição é já outra coisa distinta. Não há, portanto, que, precipitadamente, contaminar aquela com esta.
A reacção de um grupo, em primeiro lugar, apenas, por assim dizer, se prova a si mesma e nada mais para lá de si. O que é que nos diz, por exemplo, uma greve de uma classe x? Diz-nos, como vulgarmente se pretende, que o governo está "no caminho certo"? Não. Como posso eu, a partir do mero facto da greve, concluir que a acção do governo que a provocou está "certa"?... Num sentido, no sentido mais exacto e, digamos, seguro, haver uma greve demonstra somente que está havendo uma greve ou, na melhor das hipóteses, demonstra somente haver descontentamento dos que a fazem.
Uma outra variante falaciosa é a de se opinar triunfalmente que a greve revela que a acção do governo afecta "interesses" daquele grupo profissional. Muito bem. Mais uma vez, cabe perguntar: e daí?... Haver prejuízos de "interesses" demonstra por si só que esses "interesses" são ilegítimos? Como posso eu dar o salto sem mais desde 'defesa de interesses' para 'interesses ilegítimos'? Não há, nem pode haver, qualquer razão directa ou inversa entre a intensidade com que se defende um "interesse" e o seu carácter legítimo ou ilegítimo. Será que o simples facto de defender com mais ou menos afinco o meu "interesse particular" me transforma num inimigo do "bem comum"?
 Nunca é de mais repeti-lo: um grupo não está "certo" ou "errado" pelo simples facto de reagir a uma acção governativa. Deveria ser evidente que esse não pode ser o critério. E, no entanto, sabemos que é isso que os governos (exemplarmente os de José Sócrates e o de Passos Coelho) e a sua tropa de choque (em jornais, televisões, blogs) fazem reiteradamente. Pior ainda: essa argumentação falaciosa e perversa vinga, encontra eco noutros grupos que não os visados.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O objecto e o dedo que o aponta

Já todos passámos por isso. Indica-se, aponta-se um objecto com o dedo. Mas ele vê apenas o dedo. Pura e simplesmente, não é capaz de notar, avistar o objecto que o dedo insistentemente indica, denuncia. Só tem olhos para o dedo. E demora-se descrevendo-o, comentando-o. E o objecto? Não o vê - não está lá. O dedo aponta, portanto, para o vazio. É um dedo louco, um dedo "intelectual", um maçador, um dedo que teima em apontar para o que não existe. Sim, o verdadeiro objecto é, afinal, o dedo. Não aponta para nada - só ele existe, insuportável.
 
E o objecto para que o dedo apontava lá continua, incólume. Não-visto (*).
 
 
 
 
(*) Alguns animais, especialmente cães, são capazes de "compreender" que o dedo remete para um objecto e não se indica a si mesmo.

All the world's a betting exchange

Apostemos. Uma aposta é uma aposta: é o que nos diz o princípio da identidade. O apostar enquanto tal não selecciona qualitativamente sectores da realidade. E parece que quem aposta também não.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Guerra II

Embora seja prudente não esticar demasiado a analogia (uma precaução que escapa tanta vez a tanta gente, como se irá vendo por aqui), convém dizer que esta guerra também tem os seus generais, os seus estrategos, os seus rank and file, escaramuças, grandes batalhas, guerrilha surda, também as suas represálias, massacres, vinganças ridículas, as suas quintas colunas, fases enganadoras de drôle de guerre e - aqui deixa-se a analogia e pisamos terreno literal, grosseiramente literal - a sua propaganda, a sua contra-informação, as suas manipulações, a intoxicação do público. Nesta frente os governos levam a palma. Levam-na, porque são grandes praticantes, porque detêm meios nem sonhados do outro lado e porque partem logo com vantagem ao abrir das hostilidades: são quase sempre investidos pelo público com a qualidade da credibilidade - isto é, o público, misteriosamente, tende a aceitar como mais crível o discurso governamental (afinal, um discurso político até à medula), do que o discurso adversário, como se aquele pairasse num estrato "técnico", puramente apolítico.
Os discursos alternativos aos governos são geralmente escutados com um pé atrás - não passam de manifestações de "interesses" particulares ou "sectoriais" e, numa curiosa torção retórica, são apresentados por "comentadores" e "analistas" como a prova acabada de que o governo "está certo", "está no bom caminho". Isto é, é precisamente por os discursos alternativos se fazerem ouvir, precisamente por estarem ali, que o governo "tem razão". Na verdade, dir-se-ia que a bondade da opção governamental varia na razão directa da intensidade da discordância ou, ainda melhor, do protesto. (A este respeito,veja-se a imagem recorrente do "pôr o dedo na ferida" de cada vez que um discurso próximo ou emanado de um governo provoca indignações copiosas, como se pode ver aqui.) Não havendo à partida nenhum fundamento para esta relação, constitui também um mistério que ela simplesmente se estabeleça e vá fazendo o seu caminho.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Guerra

Está em curso uma guerra "cultural". O campo de batalha é a Escola. A Escola é maior do que ela mesma. Como é natural, a principal frente de combate passa pelos professores.