segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A condição de professor descolocado

Talvez ainda mais do que o processo da marcação da famosa prova salvífica do Ensino português (um Despacho assinado à socapa e publicado no Diário da República três dias antes da data da prova, quando os professores se encontravam de férias, apanhando-os de emboscada - verdadeiras vítimas, assim, de um governo de salteadores), o que esta história da anulação de colocações já efectuadas [ver aqui e aqui] mostra é uma indiferença desumanizante por parte da tutela. Não esqueçamos que esta é constituída por pessoas que, por mais incompetentes que sejam, sabem o que fazem. (*)
Quando o Ministro Crato e os seus Secretários de Estado decidem isto ou aquilo, sabem bem, conseguem prever - pelo menos parcialmente - as consequências das suas opções. O que se passa é que, prevendo-as, aceitam-nas.
As consequências não são um mero exercício teórico - qualquer coisa como uns war games com mortos e feridos a brincar. Os objectos das decisões deste Ministério são, antes de professores, gente com vidas - e as vidas são maleáveis, frágeis, à mercê de contingências exteriores. Por isso, é preciso cuidado quando se detém o poder de as afectar. (Para não falar dos alunos e das "famílias", essas entidades semanticamente misteriosas de que o Ministro Crato mostra ter a boca cheia de cada vez que a abre.)
No entanto, neste caso (um caso miserável perpetrado, assim, por gente que se conduz miseravelmente, não tenhamos medo das palavras), neste caso, não se trata somente de uma mera falta de cuidado perante a natureza frágil de vidas de gente. Trata-se, na verdade, da atribuição de uma outra natureza a essas vidas. Elas são tratadas como entidades plásticas desprovidas de consistência. As vidas daqueles professores, isto é, aqueles professores eles mesmos, não são já realidades irredutíveis, com uma consistência que lhes é própria e que os define enquanto tais (o ser-professor, o ser-humano, com tudo o que isso traz consigo, etc.); não são sequer correlatos, mas somente são constituídos como meros relativos ou talvez meros termini das decisões de agentes políticos. Estes sim, são erigidos como autênticos sujeitos: do outro lado não há ninguém - apenas material desprovido de personalidade que se encontra à mercê de qualquer decisão. Tratando-se apenas de materiais, os limites da actuação sobre os professores são também apenas materiais. Isto é, não há lugar a limitações formais. Assim, tudo parece ser permitido.
 
Não faz sentido protestar-se e invocar-se "direitos" aos que tomaram as decisões, porque esses "direitos" não foram, por assim dizer, desleixados ou ignorados. Acontece que os "direitos", quando ignorados, estão, por assim dizer, postos de lado, mas pressupõe-se sempre a sua existência anterior e a sua recuperação possível - encontram-se como que entre parênteses. Neste caso não é isso que acontece. Aqui, os "direitos" dos professores não chegam sequer a ser ignorados, porque estão como que anulados à partida. Isto é, não tivemos aqui alguém considerado sujeito de direitos a quem estes fossem, depois, retirados. Os professores-objectos-destas-decisões são, logo de raiz, constituídos como desprovidos de "direitos". Aqueles professores não estão sob nenhuma espécie de estado de excepção - uma excepção que se estabeleceria sobre o pano de fundo da possibilidade (por mais remota que fosse) da restauração de uma condição de dignidade que lhes teria sido subtraída temporariamente. 
Por outras palavras, é considerado natural que sejam tratados, que sejam dispostos como foram. Isto é, todos os processos humilhantes, degradantes e nocivos que têm sofrido às mãos do Ministério deste Governo correspondem, adequam-se à sua natureza. Num certo sentido, para Crato, Secretários, Primeiro-Ministro e apaniguados, os professores "têm o que merecem". Quer dizer, têm, sofrem o que é adequado à sua condição de material disponível e manipulável. (Quando muito, serão "humanos" apenas enquanto puníveis.) Limitam-se a estar ali, inertes e inermes - estão ali, mas não fazem, digamos, o seu lugar, como o faz um ser humano. É claro que têm reacções patéticas exibidas pelas televisões, quando se descobrem enganados, traídos, ludibriados, em aflição, mas essas mesmas reacções "humanas" não despertam qualquer "compaixão" ou "compadecimento" - pelo contrário, confirmam e reforçam, como que sendo reacções meramente mecânicas, "animais", o seu estatuto "desprezível", descartável. (E, aos olhos do público, essas cenas não melhoram de todo a sua dignidade profissional.) Isso é assim, porque essas reacções aparecem inscritas, compreendidas num quadro geral de inumanidade. (Não tenham dúvidas que é assim que os vê a chusma de apoiantes do Governo que, cada vez mais ruidosa, vai infestando blogs e mass media. A esses importam apenas os ganhos ou as perdas posicionais da sua dama - tudo o mais, a moral, a decência ou até a incolor competência técnica, é passado para segundo plano.) Aqueles professores, mais exactamente, as mais das vezes, professoras - o que não é de somenos no nosso ecossistema machista -, no seu desespero mostrado, são vistos, na melhor das hipóteses, como importunos, como maçadores.
Assim, como estão ali, mas num não-lugar, não têm nunca um lugar seu. Têm, antes e apenas, todas as posições possíveis. Têm posição (porque são disponíveis), mas não lugar.
Essa condição dos professores só cessa quando cessar igualmente o olhar que a constitui.


(*) No caso daquele processo da prova, estamos perante, não um exemplo de indiferença desumanizante, mas sim propriamente de um acto malévolo.

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